Artigos da Revista do Cinema Caipira - Jogo de Cena

 Além de falarmos sobre cinema em nossa revista, abrimos espaço também para a discussão de documentários pois, apesar  de uma linguagem própria, pode existir  uma linguagem cinematográfica dentro dele,  como é o caso do Jogo de Cena de Eduardo Coutinho, Assunto do artigo desse mês.


JOGO DE CENA
Por Lucylli Alves do Santos





Eduardo Coutinho é um grande documentarista da atualidade, seu trabalho caracteriza-se pela sensibilidade e profundidade. Ele mexe com a realidade humana mostrando a intimidade de pessoas comuns, e expondo a realidade de forma critica. Jogo de Cena é mais uma de suas obras documentaristas, neste trabalho ele mescla de uma forma interessante o documentário e a ficção, o verdadeiro e o falso, mexendo com os sentimentos, sensibilidades e emoções tanto de pessoas que participam quanto de quem os assiste.
O filme começa com um simples anuncio de jornal, no qual convida mulheres do Rio de Janeiro com histórias pra contar e participarem de um teste para um filme. As histórias contadas são todas marcantes na vida dessas mulheres, e são relativamente semelhantes (perdas, depressão, gravidez, projeto de vida, etc.), deixando as emoções à flor da pele, e dificultando o trabalho das atrizes, estas teriam que decorar e interpretar a seu modo as histórias contadas. Então é esse o jogo de cena que temos, é a mistura do real com o fictício. Em nenhum momento do filme Coutinho nos aponta qual é a atriz e qual é a real, mas isso muda à medida que vão aparecendo as atrizes famosas, tornando-se fácil a distinção entre elas, mas, de certo modo a mentira é contada tão sutilmente que acabamos nos deixando enganar pelos sentimentos à mostra, como as lágrimas que são percebidas muitas vezes, e pela incerteza de serem ou não bem vindas são escondidas e disfarçadas, ”quando o choro é verdadeiro a pessoa sempre tenta esconder”, diz Marilia Pêra, e que para o ator – principalmente da tela – as lágrimas são sempre bem vindas. Coutinho assim testa o espectador a tentar “adivinhar” se quem conta a história é quem realmente a vivenciou ou se é um ótimo ator em cena.
É interessante analisar a interpretação das atrizes, elas dão um tempo maior aos fatos, como se estivessem visualizando e/ou se lembrando das cenas contadas, acreditando naquilo como se fosse uma coisa de seu íntimo, tentando preencher cada tempo com um sentimento, tentando buscar a serenidade. Enquanto as reais contam de uma forma mais trivial, tentando preencher os espaços de tempo com palavras diante da câmera, talvez editando parte da história que se desenrolaria em uma outra história, e quando da um tempo maior Coutinho joga perguntas a elas, aguçando a desenvolver mais a história, ou a voltar ao foco. A gravação do filme foi feito no Teatro Glauce Rocha, com apenas duas cadeiras no palco e atrás poltronas e um teatro vazio, 12 mulheres são gravadas, - seis atrizes e seis entrevistadas -, no entanto apenas cinco delas tem uma correspondente atuando, as outras duas contam cada uma sua história. Em uma das cenas uma personagem de nome Nilza lança uma incógnita para o espectador. A personagem conta sua história com serenidade, totalmente tranqüila, com tanta certeza naquilo que fala que nos passa total segurança de que ela realmente vivenciou aqueles momentos, que ela realmente ouviu, disse, e sentiu cada coisa que aparece em sua história, e pelo fato de nenhuma outra atriz famosa interpretá-la; logo concluímos que então não será interpretada, que ela é uma pessoa normal que está contando a sua história para um documentário, e é então que mais uma vez nos espantamos com a arte da interpretação, pois ao final de sua cena ela olha diretamente para a câmera e diz, “Foi isso que ela disse”.
Isso mostra o quanto acreditamos naquilo que nos é apresentado, acreditamos por ser uma pessoa desconhecida, por ser inédita, tanto a história quanto a situação, ou seja, basta ser convincente para receber nossa aceitação. E é a partir daí que o jogo e a dúvida começam, pois o convincente não é mais o suficiente. Em uma outra cena interpretada por Fernanda Torres, ela fica meio perdida, a interpretação chega a construir um outro pensamento tanto nela quanto em nós, nos mostrando o quão difícil é fazer um personagem real, e mostrando suas fragilidades como atriz.
Fernanda se perde na projeção de imagens pela palavra, construindo um personagem através de sua respiração, do modo como-se-fala, do ritmo da conversa, “a diferença é que como personagem fictício se você atinge um nível medíocre, você pode até fixar ali nele, porque ele é da sua medida, com o personagem real a realidade esfrega na sua cara onde você poderia estar e você não chegou” diz Fernanda. Se a história que ela recebeu para decorar/interpretar fosse uma “mentira”, ela conseguiria de primeira, mas nisso você acaba mexendo no real, modificando uma história que tem um significado, que teve um propósito pra se formar, por isso as atrizes quiseram seguir a risca seus textos, mas na interpretação não é apenas ler e dizer, tendo todo um processo que é posto em prática a partir do momento em que você aceita fazer um personagem. Você tem que pensar como ele pensou, ou pelo menos tentar entender, ler as coisas que ele fez como se estivesse se lembrando de quando você mesmo fez aquilo, enfim, entrar em todo um processo de “formatação” não da pessoa que você é, mas sim da pessoa que vai ser por um momento, pois, o fictício muito bem contado ele acaba atingindo um nível muito além do real. Quando Eduardo Coutinho diz: "Ao se aproximar mais do real o documentário vira ficção”, é exatamente isso que acontece em Jogo de Cena, o real vai a seu extremo, o fictício por sua vez também chega a esse limite, conseguindo assim nos mostrar que o documentário e a ficção de certa forma estão juntos, se encaixam, pois, o documentário é o que decidimos acreditar, e a ficção é projetada para que acreditemos, mesmo sabendo que não é real.



Revista do Cinema Caipira Número 4 -  Junho de 2009

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