Devaneios (Bressonianos e Pessoanos)



Hoje li um poema de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa) que me remeteu a uma associação bastante lúcida (não porque eu a fiz, ou poderia ter sido também), pelo fato de parecer conversar (o poema, que vocês lerão adiante) claramente com os preceitos de Robert Bresson.
A princípio sei que esta associação parece não ter fundamento, mas num segundo momento (sem preconceitos contra os devaneios alheios) vemos que Álvaro de Campos é o heterônimo cultuador da liberdade, daquela que faz com que o indivíduo (ou eu - lírico) sinta-se livre (e tenha uma consciência para alimentar essa liberdade) para observar os mínimos detalhes da vida, o menor deles (por se tratar de ser quase imperceptível para a própria raça humana), o homem.
Agora leitor, conhecedor de Bresson, ou ainda não conhecedor (basta ler outros artigos sobre o cineasta neste mesmo blog, ou beber de outras fontes), veja se Robert Bresson e Fernando Pessoa não estão falando a mesma língua?
Inúmeras justificativas poderia decorrer para persuadir o leitor (pois inúmeras relações de semelhança existem entre os dois), mas para o momento, basta dizer que o homem é o centro de tudo (disse alguma verdade muito universal?).
Quem já “sacou” o que o cineasta espera de um ator (a não representação da realidade, a consciência dos movimentos, estranhamento aos gestos, percepção das formas, essa coisa toda...) verá no poema de Álvaro de Campos, o entendimento completo do que é para Bresson o ator modelo.
Enfim, segue o poema:

Toda a gente é interessante se a gente souber ver toda a
[gente.
Que obra prima virtual cada cara que existe!
Que expressões em todas, em tudo!
Que extraordinário perfil qualquer perfil!
Vista de frente, que cara qualquer cara!
Os gestos humanos de cada qual, que humanos os gestos!

(Álvaro de Campos)

Ah toda vez que o leio tenho mais convicção de que Bresson criou seu conceito iluminado por estes versos...

(Fernanda Tosini)

2 comentários:

  1. Interessante observação. Talvez uma pesquisa nesse sentido fosse de bom alvitre. Pessoa influenciou e influencia até hoje muitos artistas. Porque a sua poesia é atual. Ela "fala" das impressões e dos sentimentos humanos. De minha parte, acredito que os bons poetas e escritores não inventam, interpretam a vida que vivem e que viveram, que observam e que observaram, que têm conhecimento ou que tomaram conhecimento. Assim como os bons cineastas. Com a diferença de que os primeiros interpretam com as palavras, e estes, com a câmera.

    ResponderExcluir
  2. Ótima observação J. Costa, também creio que os artistas (independente se são do cinema, da literatura, artes plásticas, etc.) são meros observadores das minúcias da vida.
    E existe muito material "nas entrelinhas" do cotidiano. Tudo é uma questão de observar e (saber) mostrar. Nada se cria, tudo se recria...
    Sobre Fernando Pessoa, ultimamente tenho acreditado mais em suas verdades do que na Bíblia (isso é apenas uma brincadeira, mas de fato ele fala sobre verdades universais, a essas verdades eu chamo de “âmago humano”).

    ResponderExcluir